Escutamos, amiúde, referirem o «Estado de Direito» e, mais especificamente, o «Estado de Direito democrático», sempre que se trate da observação de regras elementares de cidadania e sobretudo de cumprimento da Lei. Mas isso faz apenas parte do imenso rol de mi(s)tificações (disfarçadas de boas intenções) sob o qual vivem as sociedades humanas terrestres.
Também, sobremaneira aquando de intensas e vastas contestações sociais, ou de crises políticas agudas (como é o caso da do Brasil atual, em que um inclassificável presidente nunca mais é destituído de tal função, quando afinal já revelou, à saciedade, não só a sua incompetência, como ainda a má-fé e o egoísmo que conformam a sua atitude política, além de múltiplas práticas criminais na condução da crise sanitária em razão da pandemia de covid-19), escutamos que devemos sempre «deixar funcionar as instituições», evidentemente que sob a alçada do tal «Estado de Direito».
E quando o leigo ouve falar de «leis» e «instituições», tende a atribuir-lhe um caráter quase divino. Lembra-lhe logo aqueles edifícios altaneiros, imponentes, que em regra se inspiram a partir da arquitetura mais clássica. E assim acaba pensando que aquelas leis, que não se veem, são contudo defendidas e feitas observar-se pela solidez muito concreta dos majestosos edifícios que albergam essas instituições.
Ora: nenhuma «instituição» é assim tão «concreta» e «sólida». E as leis que elas atualizam, a cada necessidade de utilização, não são mais que construções humanas que espelham interesses parciais (grupais, de classe ou casta) e perspetivas temporais, sejam-no de pessoas – ou de meros grupos de pessoas mancomunadas por interesses afins.
A antropomorfização é igualmente transversal às leis e às instituições que as discutem, as votam e por fim as fazem promulgar ou executar.
A matriz greco-romana não é assim tão infalível e objetiva. Antes pelo contrário: o mundo romano, sobretudo mais do que o grego, estavam prenhes de vícios, culturais (sociais e, por conseguinte, sociológicos) e psicológicos (individuais).
O caráter revisível da Lei (e também a sua margem de interpretabilidade, digamo-lo assim, precisamente incidente na pessoa do juiz, ou através dela, pois é ao juiz que, interpretando a Lei, cabe adequá-la ao julgamento das incidências sociais) aponta para isso mesmo: a Lei não é um princípio de ação assim tão incontornável e indiscutível.
Porém, nada mais vilipendiador e ameaçante para a vigência e sobretudo para a perenidade do caráter da Lei. Pois esta deve valer para todos e da mesma maneira. Ou seja: a verdadeira Lei tem de obedecer aos parâmetros de universalidade (válida para todos, pressupondo esse «todos» a intemporalidade do conjunto ao qual se aplique, seja o conjunto de elementos de um universo físico, seja o somatório de elementos de uma espécie biológica que componham uma sociedade ou uma civilização num dado momento e ao longo dos tempos, segundo a terminologia usada) e de univocidade (isto é: válida para todos, sim, mas a uma só voz, quer dizer: válida para todos da mesma maneira!).
E essas leis simplesmente (ainda) não existem. Mas certamente governam sociedades que hajam alcançado já patamares evolutivos superiores, em que o grau de responsabilidade equivalha ao grau de liberdade individual. Pois não é livre aquele que queira fazer o que lhe dê na real gana fazer, mas sim aquele que escolha ou que eleja fazer nada mais do que aquilo que seja mais correto fazer no final da ponderação das distintas opções de ação que se lhe apresentem.
«Livre» não é aquele que, descobrindo os por quês e os como, invente os meios para transformar os materiais e fazer o que não conseguia antes, através do modo natural. Voar, por exemplo.
A sensação de liberdade que o voo permita não é mais que um símil da coisa: um simulacro de liberdade — pela libertação relativamente aos grilhões das condicionantes naturais (falta de asas e atração gravitacional, já que é por sermos pesados e não termos asas que justamente não conseguimos voar).
Livre não é quem o queira ou se presuma; ser «livre» é atuar segundo a «lei de consciência», ou «consciência moral», se se preferir. Pois se se faça o que simplesmente dê na gana fazer, então poder-se-á agir bem ou mal, correta ou incorretamente, adequada ou inadequadamente. De forma aleatória. E ainda que se faça o que se fizer em proveito próprio, pode ser que aquilo que se faça seja feito prejudicialmente para o autor, até, pois a ação que não prejudique terceiros e favoreça todos é que será a ação libertadora. Uma vez que esta é a ação saudável e não a doentia. Pois por mais egoísta e inconsciente que se seja, quando alguém, pela sua ação, prejudique outrem em proveito próprio, sempre terá, ainda que não conscientemente, um rebate de consciência a lembrar-lhe da má ação. Ao passo que a boa ação enche o seu autor de um regozijo interior, que lhe liberta o espírito e o satisfaz perante si mesmo no final das considerações. É por isso que a liberdade é entendida de maneiras diferentes na consideração popular e na consideração lógica dos filósofos. Para os primeiros não existem grandes considerandos filosóficos a aportar, mas para os segundos a consideração eleva-se a patamares de outra estruturação, discursiva e comportamental. Assim foi que Kant lembrou que a verdadeira ação consciente é a ação moral e que esta será aquela que seja assumida de maneira autónoma, quer-se dizer: o indivíduo assume-a sem se sentir nem achar obrigado a assim agir, mas sim porque a sua ação estará de acordo com a Lei Moral que ele adotou como sua para por ela se deixar conduzir nas suas interações com os outros (consciência social), mas também com o próprio mundo físico em geral (consciência ecológica, que, somada à anterior, lhe conferem uma consciência holística, cósmica). E isso, não para que se redima de um certo passado ou o faça para manter limpa a (sua) ficha ‘kármica’, mas sim para que se livre da nefasta presença dos ecos de uma atitude incorreta ressoando nos labirínticos corredores da vida da consciência, carcomendo-a suave mas indelevelmente, nesta residindo a parcela que caiba ao subconsciente (o «inconsciente» não existe e não passa de uma patetice conceptual das gentes da psicologia analítica, nomeadamente Carl Jung, já que do Nada nada pode provir e do inconsciente jamais resultaria qualquer foco de consciência). Pois a consciência da falta ressoa na mente de cada um, ainda que tudo faça para negar a sua má ação anterior. Porque, mesmo esquecendo, não eliminou. E a saúde mental, que é a saúde do espírito, é a condição fundamental para a boa existência, que se trata da existência sã, sadia. É um pouco como aquela pessoa que prefere ligar-se afetiva e sexualmente a outra e não àquela por quem verdadeiramente sente amor. Mas talvez o erotismo haja falado mais alto e a sua opção momentânea apontou para outro percurso. Do qual mais tarde virá a arrepender-se eventualmente. E por quê? Precisamente porque a sua consciência tem uma vivência que não pode ser apagada; talvez ocultada, apenas — e ainda assim, parcialmente. Pelo que o rebate de consciência, mais do que o remorso ou a elaborada culpa, se insinuarão a cada tentativa de esquecimento.
Então «liberdade» não é uma opção de ação, mas sim um estádio de espírito, um sentido de justiça, uma consciência moral, um sentimento de libertação: libertação relativamente ao prejuízo (moral) que a má ação provoca, pois ela fica gravada nos arquivos da consciência individual, que a memória representa.
Só é autónomo quem assim aja, porquanto atuar segundo uma má consciência, ou uma consciência má, não acarreta a libertação do agente, mas sim a sua sujeição a essa maldade, da qual fica a depender para ganhar vantagem sobre outrem ou simplesmente para obter dali um prazer, que sempre será uma perversão de prazer, pois obter prazer e satisfação à conta do prejuízo e do sofrimento alheios é um sintoma de patologia mental e não um prazer ou uma satisfação. É aliás por isso que existe a figura jurídica do inimputável, criatura de baixo índice de consciência, que se não apercebe plenamente da envolvência, da implicação, dos seus atos. Por isso os não mede, seja a priori, seja a posteriori.
Deixar-se-á então conduzir pelas leis aquele que finalmente entendeu o que elas representem e de facto sejam. Tal como respeitará as instituições aquele que nelas descubra o caráter impessoal, mas concernente, que as mesmas detêm, não o encobrimento de manhas e artimanhas legais e administrativas que elas historicamente personificaram e encobriram, por interesse e para satisfação dos que delas se serviram a fim de preponderar sobre os demais.
No exemplo (instante!) do Brasil, as instituições não podem ficar à mercê da discricionária interpretatividade de um representante legal, seja ele presidente de que instituto estatal for (Rodrigo Maia, no caso vertente, como presidente da Câmara dos Deputados Federal). Isto é (e muito concretamente falando): a destituição de um presidente (Jair Bolsonaro, no caso, que não é senão um incapaz, em uma só palavra, mas um incapaz perigoso, sem grandes noções do certo e do errado) não pode estar dependente de um indivíduo (Rodrigo Maia) e sua vontade, ou seu arbítrio, ou sua conveniência pessoal, ou conveniências do grupo de interesses a que pertença ou que circunstancialmente satisfaça, mas sim de leis, universais e unívocas, que o levem prontamente a reconhecer os erros ou os handicaps funcionais e a suspender autonomamente a sua vigência, ou, no caso de suas renitência e obstinação, ser, por maioria cidadã, desapossado do cargo que ocupe. Liminarmente. Pois é assim que se passa nas sociedades superiores. As extraterrestres, por exemplo – ainda que, nessas, tipos como Rodrigo Maia ou Jair Bolsonaro nem sequer existam, de tão impensáveis (inadmissíveis) ali serem.
EV,
16 agosto 2020.